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"cosa mentale"

“Toda a vez que uma obra de arte é capaz de produzir o fenômeno estético em mais de um ser humano, essa obra de arte é social.”
Mário Ferreira dos Santos em "Convite a Arte e Convite a Dança", 5º edição.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Cultura: cultuá-la ou cultivá-la?



    “Que bicho é esse a que chamam cultura que deixa de órfãos imensa fratura?”

Creio que exista no que tenho observado dos últimos acontecimentos e do uso corrente um erro de acepção semântica, o que se poderia denominar paralaxe, no que tange o entendimento do termo cultura. O que me leva a formular a seguinte questão a fim de pensar a respeito da coisa:

Cultura:
Cultuá-la ou
Cultivá-la?

Poderíamos partir do pressuposto de que o fenômeno paralactíco envolvendo os sentidos da palavra complica-se ainda mais ao juntarmos outras designações da mesma família que tem o prefixo “CULT” integrado. Logo poderemos supor que há um sentido análogo entre estas palavras e que tudo isso não passa de redundância inútil...

Antes fosse assim. Como diz o Fellini (a banda, 1985): “sempre que ouço a palavra cultura, saco o meu talão de cheques, sempre que ouço a palavra cultura, saco meu revolver”. Pois bem, ao ver/ouvir as manifestações acerca do termo, sou dirigido de pronto a dúvidas enormes no que diz respeito a seu significado no dito mundo contemporâneo corporativista de administração franksteiniana, para não dizer conchavística. Logo pessoas se põem a discutir as questões da cultura, ainda mais quando esta é vista como ameaçada pelo descaso do dito ‘poder público’ (aquele representativo eleito por uma fatia da sociedade pelo processo democrático). Então entra a questão, ouço de quando em vez que cultura é uma fatura digamos horizontal e abarca toda a experiência humana em seu labor organizacional, leia-se: social. Aparentemente existe um consenso de que cultura não é necessariamente arte, mas nas organizações reivindicantes como as que ocorrem agora no ABC Paulista (e também antes na Funarte-SP), quem majoritariamente se põe a discutir cultura é o dito artista ou produtor cultural como querem alguns.

Diante do quadro, constatamos que aparentemente existe um fosso entre a chamada sociedade civil, o artista e a discussão das concepções administrativas de cultura, e que na maioria das vezes (para ser modesto e otimista) os programas de cultura, os problemas e orçamentos são discutidos por poucos. Penso ainda que o que chamam de público é justamente a fatura consumidora destas produções/programações (a parte que faz a grande máquina da cultura funcionar e se encaixar em rankings de relatórios numéricos), tudo isso dito, explicitando palidamente o que ainda está por vir, concluo que o problema geral que toma a minha percepção retínica, auditiva, olfativa e tátil é um problema de forma, que é gerado por uma falta. Temos gestores que não estão presentes no que fazem o que denota uma imensa falta de ética que por sua vez complica ‘os comos’. Esta falta de presença, de percepção, relação, e sobretudo de vergonha, ocasiona descaso e incompetência na gestão pública, a meu ver um problema sobremaneira estético. Não há sentido(s), logo não há diálogo.

 O desacordo entre as vias e a polarização do discurso faz com que a discussão corra o risco de  tornar-se unilateral. Artistas e/ou produtores reivindicam certa estrutura, alguns se põem a fazer seus projetos por meio do dinheiro público de um público que não participa e não sabe. E o desacordo por vezes ocorre entre secretarias de uma mesma gestão, o que parece ser comum na cultura administrativa. Como se, por exemplo, educação não fosse cultura etc... Eis o perrengue que contamina os sentidos e estendem a paralaxía, que pode evoluir para paralisia crônica. A cultura, somatória de valores, práticas e hábitos (bons e maus) peculiares de um povo, na forma de imposto ganha ares de ministério e secretaria, sublocações específicas de tendência universal (o discurso) e corporativa que pretendem dar o tom da mesma na forma de nichos ‘burocratizantes’ que editam e ditam os interesses e fazem muitos se engalfinharem para obter seu quinhão, é claro, “pois sou um artista”. Ao investir o dinheiro do povo, do público, ao fazê-lo retornar na forma de projetos, programas e ‘vales’ o governo cumpre seu dever e o governado (sua imagem e semelhança) sorri numa propaganda qualquer... Grato de lisonja, “por que cultura é importante!”
                                                                                                                                   
Para onde apontar o canhão? Quem é que merece o quinhão? Quem é que faz a cultura? Para quem? Quem paga a fatura?

Todos estes deslocamentos de sentido nos faz patinar no superficial. É preciso começar a entender as demandas corporativas, as concepções conchavísticas que regem os mandos políticos, é preciso entender o que significa o conceito de representatividade, a fatia social que elege determinada legenda (às vezes por diferenças pífias de votos) e os movimentos internos destas mesmas legendas que visam um populismo aparente e se articulam a seu bel prazer. É preciso obviamente partir o umbigo do partido e começar a perceber que o poder público não é feito de legendas que se fecham em seu mundo de interesses escusos e particulares e que por meio de conceitos como o de “cultura” e “democratização”, por exemplo, promovem seus desvios, empoleirando-os em altares para que se cultue a sua importância numa espécie de fé cega. É preciso saber que a cultura é um movimento contínuo e que a arte por sua potência de contraste não só a afirma, mas principalmente a questiona e justamente por questioná-la acaba por transformá-la. Contrastar é preciso.


Anderson Gomes

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