“Que bicho é esse a que chamam cultura que
deixa de órfãos imensa fratura?”
Creio que exista no que tenho
observado dos últimos acontecimentos e do uso corrente um erro de acepção
semântica, o que se poderia denominar
paralaxe, no que tange o entendimento do termo cultura. O que me leva a
formular a seguinte questão a fim de pensar a respeito da coisa:
Cultura:
Cultuá-la
ou
Cultivá-la?
Poderíamos partir do pressuposto de que o fenômeno paralactíco envolvendo
os sentidos da palavra complica-se ainda mais ao juntarmos outras designações
da mesma família que tem o prefixo “CULT” integrado. Logo poderemos supor que
há um sentido análogo entre estas palavras e que tudo isso não passa de
redundância inútil...
Antes fosse assim. Como diz o Fellini (a banda, 1985): “sempre que
ouço a palavra cultura, saco o meu talão de cheques, sempre que ouço a palavra
cultura, saco meu revolver”. Pois bem, ao ver/ouvir as manifestações acerca do
termo, sou dirigido de pronto a dúvidas enormes no que diz respeito a seu
significado no dito mundo contemporâneo corporativista de administração
franksteiniana, para não dizer conchavística. Logo pessoas se põem a discutir
as questões da cultura, ainda mais quando esta é vista como ameaçada pelo
descaso do dito ‘poder público’ (aquele representativo
eleito por uma fatia da sociedade pelo processo democrático). Então entra a
questão, ouço de quando em vez que cultura é uma fatura digamos horizontal e
abarca toda a experiência humana em seu labor organizacional, leia-se: social.
Aparentemente existe um consenso de que cultura não é necessariamente arte, mas
nas organizações reivindicantes como as que ocorrem agora no ABC Paulista (e
também antes na Funarte-SP), quem majoritariamente se põe a discutir cultura é
o dito artista ou produtor cultural como querem alguns.
Diante do quadro, constatamos que aparentemente existe um fosso entre
a chamada sociedade civil, o artista e a discussão das concepções
administrativas de cultura, e que na maioria das vezes (para ser modesto e
otimista) os programas de cultura, os problemas e orçamentos são discutidos por
poucos. Penso ainda que o que chamam de público é justamente a fatura consumidora destas produções/programações
(a parte que faz a grande máquina da cultura funcionar e se encaixar em
rankings de relatórios numéricos), tudo isso dito, explicitando palidamente o
que ainda está por vir, concluo que o problema geral que toma a minha percepção
retínica, auditiva, olfativa e tátil é um problema de forma, que é gerado por
uma falta. Temos gestores que não estão presentes no que fazem o que denota uma
imensa falta de ética que por sua vez complica ‘os comos’. Esta falta de
presença, de percepção, relação, e sobretudo de vergonha, ocasiona descaso e
incompetência na gestão pública, a meu ver um problema sobremaneira estético.
Não há sentido(s), logo não há diálogo.
O desacordo entre as vias e a polarização
do discurso faz com que a discussão corra o risco de tornar-se unilateral. Artistas e/ou produtores
reivindicam certa estrutura, alguns se põem a fazer seus projetos por meio do
dinheiro público de um público que não participa e não sabe. E o desacordo por
vezes ocorre entre secretarias de uma mesma gestão, o que parece ser comum na cultura administrativa. Como se, por
exemplo, educação não fosse cultura etc... Eis o perrengue que contamina os
sentidos e estendem a paralaxía, que
pode evoluir para paralisia crônica. A cultura, somatória de valores, práticas
e hábitos (bons e maus) peculiares de um povo, na forma de imposto ganha ares de ministério e secretaria, sublocações
específicas de tendência universal (o discurso) e corporativa que pretendem dar
o tom da mesma na forma de nichos ‘burocratizantes’ que editam e ditam os interesses
e fazem muitos se engalfinharem para obter seu quinhão, é claro, “pois sou um
artista”. Ao investir o dinheiro do povo, do público, ao fazê-lo retornar na forma
de projetos, programas e ‘vales’ o governo cumpre seu dever e o governado (sua
imagem e semelhança) sorri numa propaganda qualquer... Grato de lisonja, “por
que cultura é importante!”
Para onde apontar o canhão? Quem é que merece o quinhão? Quem é que faz
a cultura? Para quem? Quem paga a fatura?
Todos estes deslocamentos de sentido nos faz patinar no superficial. É
preciso começar a entender as demandas corporativas, as concepções
conchavísticas que regem os mandos políticos, é preciso entender o que
significa o conceito de representatividade, a fatia social que elege
determinada legenda (às vezes por diferenças pífias de votos) e os movimentos
internos destas mesmas legendas que visam um populismo aparente e se articulam
a seu bel prazer. É preciso obviamente partir o umbigo do partido e começar a
perceber que o poder público não é feito de legendas que se fecham em seu mundo
de interesses escusos e particulares e que por meio de conceitos como o de
“cultura” e “democratização”, por exemplo, promovem seus desvios, empoleirando-os
em altares para que se cultue a sua importância numa espécie de fé cega. É
preciso saber que a cultura é um movimento
contínuo e que a arte por sua potência de contraste não só a afirma, mas
principalmente a questiona e justamente por questioná-la acaba por transformá-la.
Contrastar é preciso.
Anderson Gomes
Nenhum comentário:
Postar um comentário