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"cosa mentale"

“Toda a vez que uma obra de arte é capaz de produzir o fenômeno estético em mais de um ser humano, essa obra de arte é social.”
Mário Ferreira dos Santos em "Convite a Arte e Convite a Dança", 5º edição.

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

conversa infinita - a urgência do poema I



"E, aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema." 


Manoel de Barros

sábado, 6 de junho de 2015

As coisas mudam

 


  
   Waltercio Caldas: A emoção estética -  1977

 

         Waltercio Caldas: Garrafas com rolha -1975. Um tipo de arte provérbio


 


 Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
Manoel de Barros 

                     


Arcimboldo ouviu o apelo das coisas antes mesmo de sua consumação como gênero pictórico, alcunhada de “natureza morta” no séc. XVII. Ainda assim, não tão instigante como propunha aquele.  Dadaístas/surrealistas imprimiriam o absurdo numa lógica que se propunha certa (tal é a natureza do gosto), com seus “objets trouvés”. O peso objetal de suas existências que podem soar extremamente ofensivos por serem (in)exatamente o que são,  numa ordem que varia. Munari nos diz do aspecto trans-funcional das coisas, que, quando invertidas e em associações diversas, ganham uma dimensão a qual chamamos fantasia. O princípio da fantasia é a inversão. Um poeta como Joan Brossa, que é um poeta das coisas, da palavra enquanto “coisa” se apresentava como um mágico. Um mágico sabe a língua das coisas, das coisas a língua; manuelísticamente. A ordem dos objetos/coisas os torna, por meio de sua gramática cotidiana própria, por vezes, invisíveis. Farnese de Andrade auscultou o eco mudo das coisas. A obra: uma imperiosa solidão congelada e encerrada numa circunstância de coisa. Em Farnese as coisas são insuportavelmente coisas ainda que travestidas de sua suposta irreversível humanidade. Porém, como canta o poeta Arnaldo Antunes, as coisas não tem paz: “têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido”. É por conta de sua propriedade situacional, limítrofe, apropriadas, expropriadas ou desapropriadas para outras instâncias de relação num jogo de dados que não abole o acaso, mas incita um caso, que as coisas podem proverbiar. Seu ruidoso pró-verbio é também um anti-verbio. As coisas, embora de caráter metonímico, falam por si. São sua própria língua num discurso sem curso.
 


segunda-feira, 25 de maio de 2015

en-com-otros, in-cantos - invencionar palavras, delirar o verbo, penteando osso



Miudádivas, pensatempos

(A Manoel de Barros,
ensinador de ignorâncias)


Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem da floresta, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flôr. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas a Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
ganhando a forma do nada.
Enquanto o ramo
vai transitando para camaleão
a aranha confunde madrugada com sotão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
Minha tenda se engrandece em teia.
A mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba artes de viver.
Formigas transportam
infinitamente a terra.
Estarão mudando
eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vê.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o estreante início,
a redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estomago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
andorinheiras, pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.

Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
O sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.


Mia Couto

http://www.miacouto.org/miudadivas-pensatempos-texto-que-mia-dedicou-a-manoel-de-barros/